O Processo de um Filme.

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quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

O Processo: Segunda Reunião


A segunda reunião se deu este domingo, dia 24 de Janeiro, em minha casa. Estiveram presentes, além de mim, Adelita, Galo (não mais Gallo), Guto, Marcos, Sofia e Wagner. Os demais membros do elenco e equipe estavam viajando.

A primeira coisa que fizemos foi ver E Sua Mãe Também, o incrível road movie mexicano protagonizado por Diego Luna, Gael Garcia Bernal e a espanhola Maribel Verdú. Pedi aos atores e ao Marcos que atentassem para o uso da narração em voz over e para o modo como a camêra se comportava, constantemente mudando seu foco dos atores para elementos da paisagem e para o povo mexicano.

Este filme é, até agora, a maior referência cinematográfica para a nossa Travessia. Isto porque, além de o enredo narrar a história de jovens mexicanos muito parecidos conosco (os hábitos, a classe social...), retratando-os de uma maneira ao mesmo tempo crítica e amorosa, os procedimentos mencionados são fundamentais para contextualiza-los e fazer do México - tão particular, mas ao mesmo tempo tão parecido com o Brasil - um dos personagens principais do filme.

Assim, acompanhamos e nos envolvemos com a jornada de Tenoch, Julio e Luisa, suas questões, seus conflitos, sua identidade, mas ao mesmo tempo nos distanciamos, não friamente, podendo vê-los dentro de um contexto social maior, do qual se alienam de certo modo, mas do qual não podem deixar de fazer parte. Uma realidade muito parecida com a nossa.

A sessão foi muito proveitosa. Quase todo mundo já havia visto o filme, mas re-assistir o filme de forma dirigida foi muito frutífero para o debate que seguiu, onde os assuntos acima expostos foram discutidos por todos. Após voltarmos os nossos olhares para nós mesmos a partir das questões colocadas na primeira reunião, atentamos para o fato de que o nosso filme também será um mosaico de olhares sobre o Brasil, um mosaico formado pelos nossos olhos-câmera.

A câmera que aponta para os protagonistas, a paisagem e para o povo, mas que é o olho de um narrador em terceira pessoa em E Sua Mãe Também, será o olho dos próprios atores em nossa Travessia, a narração em voz over, por sua vez, será composta pelas próprias impressões e reflexões dos atores-personagens. Nossas contradições, nossa alienação, nossos sonhos e conflitos, nosso olhar sobre o Brasil desconhecido não será, portanto, representado indiretamente, mas formado por som e imagem subjetivos, concretizando e expondo o nosso esforço para olharmos para nós mesmos, para a busca de cada um e para o país de modo honesto.

Ao final da noite demos continuidade ao nosso processo, criando um jogo cujo objetivo é descrevermos a nós mesmos e voltarmos nosso olhar para o outro. Fizemos dois sorteios. No primeiro sorteamos um ator ou membro da equipe que será descrito por todos, deu Galo. No segundo sorteamos, entre os presentes, como num amigo secreto, um membro para cada um descrever.

Assim, na próxima reunião (Domingo, 31 de Janeiro) todos deverão trazer:

1. Uma descrição de si mesmo - Cuja leitura será feita por sorteio no Domingo. Ex. Sofia lê a descrição que Galo fez de si mesmo.

2. Uma descrição de qualquer membro do elenco (vale de quem não estava domingo passado) feita por livre escolha - O próprio escritor lê a descrição.

3. Uma descrição de um membro que foi sorteado em segredo. - O descrito lê o que escreveram dele. Ex. Marcos me tirou, leio o que ele escreveu de mim.

4. Uma descrição do Galo. - Cada um leu o que escreveu, Galo não lê.

Filmaremos essas leituras no Domingo. Os objetivos e conseqüências do jogo serão expostos em futuras postagens.


terça-feira, 26 de janeiro de 2010

O Processo: Encontrar-se

Mas pouco sabemos o quanto de incontrolável há em nós, instando-nos a atravessar gelereiras e torrentes e subir a alturas perigosas, por mais que o juízo proíba.
John Muir - As montanhas da Califórnia


É mais do que provável que não subiremos a picos de alturas perigosas em nossa viagem, mas está mais do que claro que o que nos une é a vontade de experimentar a vertigem de um outro abismo: o de nós mesmos.

Estávamos na Ilha do Cardoso quando o primeiro passo em direção à exploração desse abismo foi dado. Com quase todos os atores presentes, lhes foi entregue um papel com duas perguntas:

1) O que você gostaria de viver e ver acontecer nessa viagem?

2) O que te falta coragem para fazer?

Cada resposta que recebi até agora continha suas particularidades, suas nuances, seus desejos; mas todas, sem exeção, continham uma vontade em comum: que cada um se permitisse ser plenamente o que deseja ser, ou o que já é por dentro, que cada máscara, por mais louca, sombria, selvagem, viesse à tona.

Está claro então que vivemos nossas vidas de maneira que não nos libertamos totalmente. O nosso ambiente e nossas próprias travações nos levam todos à uma insatisfação em relação à nossas vidas. Viajaremos então. Mas tal viagem não é uma fuga e sim uma busca por se viver e filmar como se acredita, de um jeito único, individual, não como nos foi dito para fazer, mas como descrobriremos ser o nosso. O ser viajante, tão presente no cinema e na literatura, muitas vezes é visto como um ser em fuga, mas raramente o é de fato. Optar por viver uma vida diferente não é fugir da vida que nos é imposta, mas combatê-la.

Estas primeiras perguntas foram então o passo inicial para que iniciemos juntos essa empreitada coletiva, e solitária ao mesmo tempo, em direção ao que acreditamos, ao que sonhamos. A tomada de consciência perante aos desejos e censuras que carregamos é fazer as malas de uma viagem que já começou.

1º Projeto de Intenções

Este filme nasce da necessidade de se viver a vida e o cinema como uma aventura, uma jornada, uma busca pelo encontro consigo mesmo através da coragem de se viver como se acredita. Travessia.

Nos últimos três anos de faculdade estudamos a evolução da forma como diversos cineastas resolveram representar seus mundos. Entramos em contato com obras maravilhosas, em que a linguagem inovada convergia com uma maneira peculiar de se ver e viver o mundo. Assim é cinema de Godard, Vardá, Truffaut, Cassavetes. No entanto, ao nos voltarmos para a nossa própria produção, via de regra, acabamos por fazer filmes de maneira pré-estabelecida, como se só houvesse uma maneira de fazer as coisas. A nossa própria postura, um tanto influenciada pela estrutura e ideologia reinante no curso (que por sua vez reflete uma ideologia reinante na sociedade), acaba por ser carreirista. Devemos aprender como se faz, para que nos formemos aptos a entrarmos no mercado de trabalho. Somente por alguns momentos, entre a correria de uma produção e outra, nos perguntamos: "É isso o que queremos?"

A conseqüência é que, por mais que os filmes que fazemos se diferenciem pelas linguagens propostas, pelas influências cinematográficas sensíveis, os mundos neles representados, as questões, os conflitos pouca trazem de inovador, de provocativo, questionador. Em outras palavras: Somos capazes de nos degladiar em nossas discussões em classe e na internet para defender uma postura cinematográfica, uma proposta de linguagem, um determinado cineasta, mas pouco discutimos - e quase nada se vê em nossos filmes - sobre como somos quase identicamente consumistas, sobre as particularidades da nossa geração, a nossa sexualidade, amorosidade, apatia política, trabalho, família, sobre muitas coisas, enfim, sobre o modo como escolhemos viver, ainda que muitas vezes não pareça uma escolha.

Isto posto, o filme que escolhi fazer é sobre jovens paulistas diante de suas opções de vida, sobre jovens que vivem e discutem essas suas escolhas, suas qualidades, seus defeitos. Esses jovens são atores, amigos, e as pessoas mais interessantes e generosas que conheço.

A partir da segunda semana de Julho de 2010 viajaremos por 21 dias todos num mesmo veículo, passando por Minas Gerais, cruzando o Rio São Francisco e terminando no litoral baiano.
A pergunta que surge então é: Como isso se fará um filme?

O filme se construirá de modo a convergir tema, linguagem, processo e modo de produção. Uma vez que se trata de falar das escolhas e descobertas da vida de jovens e da opção por não seguir caminhos pré-estabelecidos, filmaremos os atores vivendo as suas próprias vidas. A vida que estarão vivendo é a de viajantes, de aventureiros, de pessoas que se permitem a liberdade e querem cada vez mais dela, de pessoas em busca de conhecer novos lugares, hábitos, vidas diferentes de seus cotidianos, de pessoas que estão seguindo um caminho na estrada, mas também um caminho ao encontro do que desejam ser. Inevitavelmente será também um filme sobre pessoas que estão fazendo um filme; este dado, no entanto, não nos servirá como elemento metalingüístico, mas como parte do processo de se instigar os atores a viverem suas questões e conflitos mais intensamente: justamente por estarmos fazendo um filme enfrentaremos nossos medos, viveremos a fundo as nossas questões. Eis o (novo?) caminho que se abre para a metalinguagem: não nos interessa escancarar o aparato gratuitamente, mas construir sutilmente a ambigüidade para o espectador: “Afinal, isso é realidade ou ficção, essas pessoas viveram realmente isso?” Sugerindo, por fim, que a vida e a liberdade vista na tela é possível de se praticar.

Isto posto, nada nos impedirá de construir cenas, de repetir, de encenar, uma vez que o processo em si pressupõe que a vida e o filme se misturarão, confundirão, ao ponto que no fim da viagem todos poderão dizer: “eu vivi isso”, afinal, vivendo ou encenando, estamos sempre representando a nós mesmos.

Logo ficou evidente o risco de um filme feito assim se tornar apenas um documento de viagem, um registro, e de ficar desinteressante para quem não conhece as pessoas envolvidas. O processo descrito para o desempenho dos atores então daria conta disso: vive-se mais intensamente por se estar fazendo um filme, expõe-se mais seus defeitos, seus conflitos, suas questões, tem-se mais coragem para realizar seus desejos. Mas para que isto se dê de fato, desde já, em nossa primeira reunião, começamos a instigar esse movimento, assim, para cada ator, foi entregue uma carta com o seguinte conteúdo:

"Vida devia ser como na sala do teatro, cada um inteiro fazendo com forte gosto seu papel, desempenho. Era o que eu acho, é o que eu achava."
João Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas

1) Nosso filme será uma aventura. A aventura de se jogar na estrada; a aventura de se brincar com a fronteira da vida e da encenação, vivendo no limite dos nossos desejos, questões e conflitos justamente por estarmos registrando quem somos, quem estamos vindo a ser. Iremos filmar a nós mesmos, mas justamente por estarmos nos filmando seremos algo além do que costumamos ser. Então o que você gostaria de viver e ver acontecer nessa viagem?

2) O que te falta coragem para fazer?

As respostas à essas perguntas deverão ser entregues somente a mim, neste caso. Mas ao longo dos meses continuaremos o processo de promover em nós mesmos e coletivamente a abertura necessária para vivermos questões profundas que nos digam respeito, mas que também reflitam demandas da nossa juventude, questões da nossa sociedade, do Brasil. A cada reunião algo novo será proposto, equipe e atores poderão então se perguntarem coisas, trazer filmes que sejam referências significativas pelo conteúdo e/ou pela linguagem. Coletivamente chegaremos ao estado de espírito necessário para a construção de uma obra em si essencialmente coletiva.
Isso nos leva ao ponto final deste primeiro projeto: A linguagem do filme. Como parte do processo, cada ator construirá um diário que terá a forma que cada um optar. Gustavo (Gallo), por exemplo, que é músico, já declarou que irá fazer o seu com suas composições. O filme então alternará sua narrativa entre os pontos de vistas de cada ator, marcado pelo som over da leitura desses diários, que deverá ser gravado ao fim de cada diária, pelo menos como som guia, para uma futura regravação em estúdio. O material desses diários, além de construir a narrativa, servirá para elaborarmos cenas e conflitos. Assim o filme será conduzido por esses fragmentos associados à imagens feitas pelos próprios atores, que serão devidamente treinados para operarem a Canon 5D Mark II, que por ser leve e também uma máquina fotográfica, não deverá causar muitos problemas.

Eis então um filme coletivo feito por um mosaico individual de olhos-câmera. Olhos que permitirão serem olhados por quem quiser e olharem quem e o que quiserem. Um filme vivo, o único que vejo sentido fazer como TCC, como visão de mundo, não autoral no seu conteúdo, pois busca este no mundo e nas pessoas; mas talvez na sua forma, a qual acredito estar plena de uma vontade de se correr riscos, de matar o tédio e o cotidiano, de se viver e filmar como se acredita, não como nos foi dito que deve ser feito.

“Viver é muito perigoso”. Coragem.

Elenco:
Adelita Ahmad (Biju, Adelícia, Lali, Delitinha, Bruxinha)
Gustavo Simões (Gallo)
Isabel Wolfenson (Bel)
Lia Elazari Biserra (Lia, Elias, Lia 2, Bichinho da Areia)
Luiz Augusto Nogueira (Guto, Biju, Felpo, Woofer)
Pedro Henrique Manesco (Gomgom, Carneiro, PH)
Sofia Botelho (Sô, Songa, Cherry Flower, Sub-Woofer)
Tom Butcher Cury (Zezé Mutema, Zela, Gatom)
Wagner Antônio (Cherry Beagle, Waginão, W.A)

Equipe:
Direção / Produção: Tom Butcher Cury
Produção: Diogo Faggiano
Fotografia: Marcos Vinícius Yoshizaki
Som direto e Edição de Som: Alan Gomes Zilli
Música: Gallo, Guto, Gomgom, elenco e Trupe Chá de Boldo
Ass. Direção: Miguel Antunes Ramos

Referências:
Grande Sertão: Veredas - João Guimarães Rosa
Utopia e Paixão - Roberto Freire e Fausto Brito
La Ojarasca - Gabriel García Marques
On the Road - Jack Kerouac
O espinafre de Yukiko - Frédric Boylet
Na natureza Selvagem (Livro) - Jon Krakauer
E sua mãe também - Dir.: Alfonso Cuarón
Easy Rider - Dir. Dennis Hopper
Shadows; Uma Mulher sob influência - Dir.: John Cassavetes
Aquele Querido Mês de Agosto - Dir. Miguel Gomes

Capa:
Pearlblossom Hwy. - David Hockney (1986)